RICARDO MARTINS_ A TOTALIDADE DO ESPAÇO E DO TEMPO

É difícil cruzarmo-nos com alguém como o Ricardo e ficar indiferente. Crescer com bandas icónicas, do experimental ao screamo e ao rock, é conhecê-lo a ele também. O homem dos mil projectos, claramente uma das figuras máximas na música que se faz por cá. São mais de 40 bandas no reportório (sim, quatro dezenas!) e sabemos que não fica por aqui. Para além disto, que lhe é intrínseco, ainda tem tempo para o design e para tantas outras coisas.


Obrigado, desde já, por estares aqui a fazer a festa do arranque da VULTO. Até debatemos juntos o nome… tinhas de ser um dos primeiros.
É um prazer enorme. Bom saber que o projecto ganhou forma.

Há muitos anos que te acompanho e sei que fazes mil coisas por dia (não sei como consegues)! És como um polvo? Como é que arranjas tempo para tudo? 
Ahah, não sei bem. Poucos fins-de-semana, dias mais longos… Não é estranho um dia ter 12 horas de trabalho. Adoro isto, passados estes anos todos é super natural. É uma montanha-russa. Nem sempre é óptimo mas quando chega ao fim da voltinha estás de sorriso nos lábios e queres ir outra vez.

Lembro-me bem dos tempos de Adorno, I Had Plans… tinham uma energia incrível. Falamos de há 15 anos? E, esses tempos, eram mesmo incríveis? 
Foram, sem dúvida. Adorno é muito importante para mim. Viajámos tanto, crescemos juntos musicalmente e como pessoas. Somos família. Ficaram 10 discos em vinil, entre splits, EPs, etc. Fizemos muitos amigos por aí e é daquelas bandas que se torna mundo. A música acaba por ser apenas uma pequena parte.
I Had Plans foi um abanão que permitiu experimentar sem rede. Saiu um 12″ muito bonito e acabou, infelizmente, cedo demais. Havia ali muito disco…
Ambas geraram outras bandas com as quais ainda toco hoje. Bandas às quais tenho uma ligação emocional forte. Parte muito importante disto são as pessoas. Nisso, e nesses anos, saiu jackpot com regularidade.


foto: João Descalço


Olhando agora para trás e para todo esse percurso musical, como eras tu nessa altura e como é que te vês hoje?
Acho que tinha uma energia idêntica. Queria fazer tudo, sempre. Mudou apenas a paciência. Era tudo super urgente, parecia-me tudo a coisa mais importante. Talvez me preocupasse com algumas coisas técnicas que hoje em dia nem penso.

A ideia que passa é que era sempre uma cena muito familiar. Digamos que de um universo de 10, 15 pessoas surgiam mil bandas. Os amigos mantêm-se todos?
Esse grupo de pessoas de que falámos é um grupo pequeno e de um magnetismo forte. Estamos agora a começar mais um par de projectos; olhas e percebes a sorte que tens de tocar com algumas destas pessoas há quase 20 anos. Lógico que há malta que já não toca, que saiu de Portugal, que encontrou outras aventuras. E vieram outros amigos e criaram-se outras famílias.

Se tivesses de escolher uma banda tua que te marcou imenso, qual seria?
São tantas bandas especiais que não seria justo. O início foi muito importante. Diria que Lobster, Adorno e Suchi Rukara. Foi o que me deu escola, me deu mundo.


E a melhor banda com a qual partilhaste palco?
O concerto com Deerhoof foi marcante. Não sei se “a melhor banda com que partilhei palco” porque me custa ver isso assim. Mas encontrei neles uma liberdade que procurava. Depois há uma série de bandas com as quais fizemos tour que eram óptimas musicalmente. Os Mucky Sailor, por exemplo.

Estivemos no mesmo espaço em junho de 2019, no LAV, em Lisboa. Fala-nos sobre essa noite e sobre a partilha de experiências com a banda icónica de Long Island.
O concerto com Glassjaw foi especial, maioritariamente pela partilha com o Alex. Gosto muito dele e de tocar com ele. Foi um dia cheio, numas semanas intensas. Estarmos ali os dois foi um belo presente. Algumacena (https://www.instagram.com/algumacena/) tem isso, é uma purga. Passa por ser descarga e celebração. Mas quanto aos Glassjaw, ambos ouvíamos a banda nos anos 2000 e foi fixe estar por lá com eles a falar de cenas random. Super simpáticos, especialmente o vocalista que ficou mais por lá connosco no pré-concerto.

No final de março deste ano, 2021, partilhaste um vídeo brutal da Multiverso no instagram…  
Em 2009 comecei a explorar usar pedais de guitarra na bateria. Dei um concerto a solo, no Barreiro, com gear emprestado e passado uns tempos fiz uma tour ibérica (a primeira a solo) com os The Sound Of Typewriters. Depois disso foi meio on/off no que toca a concertos a solo. Ao mesmo tempo ia usando esses “truques” em gravações, fosse gravações em Papaya (onde creio que passo mais tempo nos pedais que a tocar/gravar bateria) ou em concerto com Jibóia, por exemplo. Quase 9 anos depois gravei o primeiro disco a solo. Só bateria e looper. Queria despir as músicas de uma série de sons que conhecia, ouvir mais a bateria crua. Talvez porque me parecia importante explorar os sons que estavam na bateria e ainda não tinha posto em disco. Já andava a pensar nisso e juntamente com a editora Jeff (UK) decidimos gravar uma música todos os meses (no estúdio do Bernardo Barata). Eles escreviam um texto que acompanhasse a música (texto ficcional com relação com as músicas) e íamos partilhando. O disco ia, então, surgindo aos poucos. No final saiu um 12”: o “Furacão”. 

Entretanto apareceram os projectos para teatro e a procura por sons diferentes. Passei a gravar mais sozinho. Encontrei o amor pelas gravações de campo. No ano passado um velho amigo ajudou-me a criar a minha rack de síntese modular. Nave para concertos a solo e para o futuro da música que faço a solo, para teatro, ou peças que vou compondo. A Multiverso é o resultado disto tudo. A convite da Revolve para participar num festival da Common, fui para estúdio e saiu aquilo. Improvisação… mistura de bateria com os pedais, modulares e com alguma voz. Acabei por gostar e vai sair num disco chamado “incerteza absoluta”. 25 minutos de música. Sai no mês que vem, maio 2021, e junta-se a um tema que gravei no fim do ano passado. Esse fruto de um par de dias em estúdio, de caminho oposto à Multiverso, onde, em vez de sair tudo de um take, saiu tudo do pensar em todos os detalhes e do poder ter layers e layers.

foto: João Descalço


E ainda tens a Desisto… É aqui que dedicas mais tempo do teu dia? Ou é 50/50? Achas que a música e o design acabam por influenciar uma coisa e outra na tua vida?
É mesmo 50/50. Não quis ter de escolher e insisto na teimosia de fazer as duas, como se o dia tivesse horas pensadas para que assim fosse. São coisas diferentes mas vêm de mim. Tem diferenças que ajudam a equilibrar a forma como vejo as coisas. Sou mais visceral na música, creio. Mais metódico no design.

Como é o processo criativo na empresa e quando é que decidiste criá-la? Tenho a ideia que, novamente, é algo familiar…
Começou como escapatória ao das 9 às 5, em Barcelona. Fruto do amor que temos por design, eu e a Margarida, e um pelo outro. Começámos por editar publicações, fazer exposições, criar uma série de projectos para sair até um pouco do design, mais ligado só à imagem. E escrever mais, entrevistar, aprender coisas novas.

Quando voltámos a Portugal, o José juntou-se a nós. Tinha sido colega da Margarida no mestrado e falávamos disto de começar o estúdio, ficar por cá. De momento somos 6 pessoas mas continuamos como estávamos no início. A ideia é fazer bom trabalho gráfico, sem atalhos, sem merdas. Passa principalmente pela cabeça dos 3, abrindo agora conversa para a equipa. Há uma linguagem estética comum e tem sido bonito ver a plataforma a crescer.
Desejo que seja casa de mais pessoas, com forte vertente didática (damos todos aulas e eu e a Margarida coordenamos um curso de web design). E pronto, é ir andando.

Fico curioso e atento para ver quem vai passar por cá. Boa sorte para o projecto!